Há algum tempo falei aqui da estrada Nacional 202 que é bem bonita sim senhor. No entanto, há espaço no meu coração para mais alcatrão. Neste caso em particular, alcatrão que é minhoto como o da já aqui homenageada Nacional 202. Se calhar devia fazer um blog só sobre rede viária, imagino o furor nas redes sociais!
Durante uma eternidade, na era pré-auto-estrada (coisas com dois hífens caraças!) a N13 entre Porto e Valença foi a principal ligação entre o Norte do país e a Galiza. Isto significa que se trata de uma estrada com muito trânsito provando que não só as estradas perdidas no meio dos montes podem deixar belas recordações na memória de viajantes.
Começar no Porto aqui não interessa para nada, o interesse disto é mesmo de Viana do Castelo para cima: passar o rio Lima pela Ponte Eiffel com a Santa lá no topo do Monte de Santa Luzia é logo um abre olhos para quem vem distraído e entediado com a viagem.
A Ponte Eiffel, a Santa Luzia, Viana do Castelo e a Foz do Lima.
Dali para a frente, saindo de Viana até ao fim de Portugal, seguir sempre pela beira mar é uma experiência estranhamente calma, especialmente no trânsito tumultuoso de Agosto. Será o efeito calmante da Senhora da Agonia ou simplesmente o facto de estar de férias? É capaz de ser a última hipótese embora lhe falte a veia poética que me caracteriza.
Ultrapassada a pitoresca estância veraneante de Âncora, o fim de Portugal anuncia-se com o primeiro vislumbre do Monte de Santa Tecla e do Forte da Ínsua ali na Foz do Minho. Para pessoal com muita, muita vontade, podeis fazer-vos ao mar ali por Moledo. É provável que saíam de lá roxos e com os ossos a ranger, mas enfim, são opções. Eu por mim preferia fazer um piquenique ali pelo Pinhal do Camarido e deixar o banho para um local com esquentador.
De banho tomado ou de barriga cheia chegamos a Caminha e o Oceano Atlântico é substituído do lado esquerdo pelo rio Minho. Cuidado não se distraíam, a estrada é mesmo em cima do rio ao ponto de não ser difícil ir lá parar. Da Foz do Minho passamos pela Foz do Coura e seguimos até Vila Nova de Cerveira, provavelmente uma das vilas mais encantadoras de Portugal. Os mais românticos podem ir visitar a Ilha dos Amores; eu prefiro vê-la do cima do monte. Suponho que seja apenas uma questão de perspectiva.
O rio Minho, a Foz do Coura, Caminha e a marginal N13.
Chegamos por fim a Valença. Valença do Minho parece-me algo redundante visto que estamos no Minho e estamos em Valença; aposto que foi algum gajo de Lisboa da Estremadura a pôr este nome à terra. Uma vila fortificada, com canhões a apontar para Espanha: o sonho de qualquer nacionalista encartado que ainda sonhe com a anexação de Olivença.
Pessoalmente é o posto fronteiriço que maior impressão me causa. Nascido na União Europeia, parece-me um conceito um bocado marado pôr polícias numa ponte que une pessoas que são basicamente iguais. É que não há mesmo diferenças entre Portugal e a Galiza.
Eram bem divertidas as burocracias de outros tempos.
Vista da Fortaleza de Valença para o Posto Fronteiriço, a Ponte Internacional e Tui.
Ao ler "As Aventuras de Três Ingleses e Três Russos" de Júlio Verne, chego à conclusão que os meus objectos preferidos desde puto são mapas, de tudo e mais alguma coisa: globos terrestres, mapas das estradas, cartas militares,...tudo! É fascinante olhar para uma remessa de lugares estranhos e perceber, por exemplo, que Nome é o nome de uma cidade no Alasca ou que a ilha do Elefante não passa de um rochedo gelado nos mares do Sul.
A ideia de representar o Mundo numa folha de papel é megalómana, inspirada e eminentemente genial. Na novela de Júlio Verne, a equipa anglo-russa viaja pelas florestas da África do Sul com o objectivo de medir o meridiano terrestre e ter assim uma referência indestrutível para a definição do sistema métrico. É um livro algo improvável onde os heróis são astrónomos, cartógrafos e matemáticos com um saudável gosto pela aventura, tão típico nas histórias de Verne.
Voltando ao tema inicial, existe uma magia qualquer em olhar para um mapa, planear um passeio, chegar ao sítio, sobrepor as nossas ideias pré-concebidas à realidade e perceber que esta estrada não era bem aquela que queria, que aquela lomba é uma subida do caraças que nunca mais acaba, etc. Tão bom como o passeio em si, é a possibilidade de o planear com um mapa aberto em frente e sonhar com tudo aquilo que nos espera.
Ah e larguem a porcaria do GPS, os mapas em papel são muito mais divertidos até pelos sítios improváveis que já conheci à pala dos ligeiros erros de navegação que vão surgindo.
É notícia por estes dias a distinção da estrada nacional N222 como a melhor estrada do Mundo para conduzir. Achei engraçada a forma de apresentar a notícia como um ranking baseado numa fórmula inventada por um físico quântico; é o chamado argumento de autoridade embora eu falhe em perceber a relevância da formação académica para avaliar a beleza de uma estrada. Mas adiante, o homem é físico e portanto como diria Sheldon Cooper, deve ter um working knowledge of the entire universe and everything it contains.
Claro que tudo isto é conversa fiada porque como toda a gente de bom gosto sabe, a estrada mais bonita do país é a N101: de Braga, cidade dos arcebispos (ou dos 3P's consoante o gosto) até Monção, é um desenrolar da paisagem mais verdejante e frondosa do país, encapsulando a essência do Alto Minho em pouco mais de 100km. Isto sem falar dos locais absolutamente encantadores por onde se passa: as feiras em Vila Verde, a excelente e suave subida à Portela do Vade seguida de uma rápida descida até Ponte de Barca e ao rio Lima; os Arcos de Valdevez logo ali ao lado, vila e rio unidos ao longo de todo o percurso que a N110 faz a atravessar a povoação; nova subida e muitas curvas por entre sombras cerradas até ao alto do Extremo; e por fim o sumptuoso Palácio da Brejoeira que constitui uma espécie de prenúncio da chegada a Monção e ao fim de Portugal.
O Alto Douro realmente sim senhor mas se querem ser fixes e alternativos atirem-se antes para o Minho e tentem resolver o seguinte dilema epistemológico: o que é que podemos realmente conhecer sobre uma estrada?
Uma das vistas da melhor estrada do país, cortesia da Wikipédia.
E para finalizar esta série de recortes do livro "A Viagem dos Inocentes", fica um conjunto de excertos que, nos dias de hoje, implicariam a crucificação imediata de Mark Twain na praça pública tendo em conta que fogem ligeiramente ao politicamente correcto. Comecemos então com algumas observações sobre as singulares atracções das grandes cidades europeias.
Se querem ver toda uma gama de deficientes sortidos, há que ir a Napóles ou viajar pelos Estados Romanos. Mas se quiserem mesmo ver uma autêntica colmeia, quer de estropiados quer de monstros humanos, então vão directamente a Constantinopla. (...) Os deficientes europeus são uma ilusão e uma fraude. Os verdadeiros talentos brotam apenas nas vielas de Pera e Istambul.
Noutro âmbito, mais anotações simpáticas sobre os povos estrangeiros e o aperfeiçoamento da pessoa humana.
A moralidade dos gregos, turcos e arménios consiste apenas em ir regularmente à igreja nos dias santos e em quebrar todos os dez mandamentos ao longo da semana. A mentira e a aldrabice são coisas que lhes vêm naturalmente, e que depois vão trabalhando até atingirem a perfeição.
Sobre o que fazer em face do perigo (claramente numa fase pré-Chuck Norris da cultura americana).
- Beduínos!
O meu primeiro impulso foi o de correr para a frente e aniquilar os beduínos. O segundo foi correr para trás para ver se havia alguns daquele lado. Segui o segundo impulso.
O autor impressionado com a eficácia da missão cristã de conversão dos povos bárbaros ao Espírito Santo.
Fez o que pôde [a Igreja] para os convencer a amá-Lo e a adorá-Lo; primeiro, torcendo-lhes os polegares nas articulações com uma turquês; depois, beliscando-lhes a pele com tenazes - tenazes em brasa, que são as mais confortáveis no tempo frio; depois, esfolando-os vivos um bocadinho e, finalmente, grelhando-os em público. Conseguiam sempre persuadir os bárbaros. A verdadeira religião, quando bem ministrada, como o fazia a Madre Igreja, traz um imenso consolo.
Para terminar, Mark Twain como profeta das realidades geopolíticas do século XXI.
A Grécia é um deserto lúgubre, de cenho cerrado, e, aparentemente, sem agricultura, indústria ou comércio. É um mistério como sobrevive o seu povo miserável, ou o seu governo.
Tal como frequentar uma barbearia de Paris, Mark Twain tinha o sonho de poder usufruir de um banho turco em Constantinopla; tal como em Paris, as expectativas de Twain sairiam defraudadas em toda a linha. De uma experiência cuja descrição preenche páginas em "A Viagem dos Inocentes", ficam as impressões finais do autor.
É uma odiosa aldrabice. Quem quer que goste de tal coisa deve gostar das coisas mais repugnantes à vista e aos sentidos, e quem quer que lhe descubra um encanto poético, com certeza se deleitará com todas as coisas aborrecidas, tristes, desgraçadas e nojentas deste mundo.
Em mais um capítulo da série que pode ser definida como "Coisas que fizeram Mark Twain ficar sobejamente desiludido com o Velho Mundo", é impossível deixar de mencionar Veneza. Além de notar que perdera a glória de outrora, sendo agora uma cidade miserável e abandonada, esquecida do mundo, o maior balde de água fria foram mesmo a famosas gôndolas.
Esta era a famosa gôndola e este o deslumbrante gondoleiro: a primeira, uma velha canoa mal pintada, ferrugenta, com um forro de esquife amarrado a meia-nau, e o segundo um vagabundo andrajoso e descalço a mostrar uma parte da roupa interior que se deveria defender do escrutínio público a qualquer custo.
No entanto e como escritor de grande sensibilidade e benevolência, Mark Twain não deixa de ver as coisas por um prisma mais optimista e positivo.
Não se vê terra seca em lado nenhum, nem passeios dignos de menção; se quisermos ir à igreja, ao teatro, ou a um restaurante, temos de chamar uma gôndola. Deve ser o paraíso dos inválidos, já que realmente as pernas não nos servem de nada aqui.
Chegados a Paris, os Peregrinos viram-se na necessidade de contratar um guia. Um processo de selecção complicado, desgastante e baseado em critérios dúbios.
Um deles era tão parecido com um pirata que o deixámos partir imediatamente.O segundo falava com uma pronúncia tão afectada que chegava a ser irritante (...) O terceiro conquistou-nos. (...) Este homem - que era afinal o nosso lacaio e servo - não deixava de ser um um cavalheiro.
Tudo parecia bem encaminhado até ao momento em que perguntam ao homem o seu nome.
Billfinger! Oh deixem-me morrer na minha pátria! (...) o nome atroz também me arranhou os ouvidos. (...) Quase que lamentei termo-lo contratado, com um nome tão insuportável.
Chamemos-lhe Ferguson - disse Dan. (...) Sem mais discussão, livrámo-nos do Billfinger, enquanto tal, e passámos a chamar-lhe Ferguson.
Ultrapassada a questão central da nomenclatura, rapidamente as coisas começaram a dar para o torto e os viajantes perceberam que tinham ali um farsante de primeira ordem que os tinha enganado com um "discurso de abertura (...) perfeito".
(...) estava sempre com fome, sempre com sede (...) Estava sempre a querer que comprássemos coisas (...) O biltre traiçoeiro! (...) patife consumado.
E foi assim a experiência de Mark Twain com os guias turísticos de Paris. Uma experiência enriquecedora e que o motivou a prometer desde logo um regresso.
Hei-de visitar Paris outra vez, e então os guias que se cuidem! Irei com as minhas pinturas de guerra... levo o meu machado à mão.
Também em Milão e Génova o guia foi uma peça essencial na visita dos Peregrinos. As suas qualidades de poliglota estiveram sempre presentes, permitindo uma experiência cultural profunda aos viajantes americanos.
Foi o guia que nos contou, e não me parece que ele se aventurasse à tarefa arriscada de contar uma mentira, quando nem sequer consegue dizer uma verdade em inglês sem deslocar o maxilar.
Os guias sabem o suficiente da língua estrangeira para misturarem tudo de modo a que a gente não perceba patavina de nada.
Mas como em todas as boas histórias, o nosso herói teria um momento de redenção em que todas as agruras e mágoas da viagem seriam recompensadas com o avistamento de algo sublime, belo e de molde a aquecer qualquer coração empedernido. Tudo se passou na subida ao Vesúvio, vulcão sobranceiro à cidade de Nápoles, permitindo a contemplação de um "belo panorama de um ponto alto da montanha".
Foi então que o tipo que ia agarrado à cauda do cavalo à minha frente, infligindo ao animal toda uma panóplia de crueldades, levou um coice que o atirou a várias jardas dali, sendo que este acidente (...) me dispôs muito serena e alegremente, e senti-me muito satisfeito por fazer a caminhada do Vesúvio.
Principia aqui uma nova sub-rubrica com a qual todos os viajantes se poderão identificar: chegar a um sítio com altas expectativas e nada corresponder à ideia que tínhamos projectado com base em pesquisas prévias. O mesmo aconteceu com Mark Twain durante a sua Cruzada até à Terra Santa.
Entre as peripécias com o guia turístico, que acabaram por marcar a estadia em Paris, Mark Twain pôde enfim concretizar um sonho de criança.
Desde pequenino que eu tinha a magnífica fantasia de um dia me fazerem a barba numa barbearia palaciana de Paris. Queria poder estender-me ao comprido numa poltrona para inválidos com quadros e mobiliário sumptuoso à volta; com frescos nas paredes (...) com perfumes da Arábia a inebriarem-me os sentidos (...) Ao fim de uma hora despertaria a contragosto e contemplaria a minha carinha suave e macia como a de um bebé. Quando me fosse embora, imporia as mãos sobre a cabeça do barbeiro, dizendo: «Deus te abençoe, meu filho!»
Apesar de desconhecer os usos e costumes do século XIX no que ao corte de pilosidades diz respeito, diria que se calhar eram expectativas um tudo-nada elevadas. O mundo de Mark Twain começa a desmoronar assim que entra na "barbearia palaciana".
Levaram-nos então para uma salinha das traseiras, exígua e pardacenta; arranjaram duas cadeiras de escritório e sentaram-nos nelas com os casacos vestidos.
Estava então o circo montado e tudo pronto para que "um dos vilões das perucas" (a.k.a. barbeiro) iniciasse a nobre cerimónia do fazer da barba de um distinto cavalheiro americano.
...ensaboou-me a cara (...) e, como toque final, emplastrou-me uma massa de espuma dentro da boca. Cuspi aquela coisa nojenta com um grande palavrão em inglês. (...) Depois o criminoso amolou a faca na bota (...) O primeiro golpe da lâmina descascou-me a pele da cara e fez-me levantar da cadeira. (...) Diga-se apenas que me sujeitei ao cruel sacrifício de deixar um barbeiro francês fazer-me a barba, com lágrimas de tremenda agonia a correrem-me pelas faces (...) E então o aprendiz de assassino levou uma bacia de água abaixo do meu queixo e salpicou o que estava lá dentro pela minha cara (...) sob o falso pretexto de lavar o sabão e o sangue. (...) preparava-se para me pentear quando pedi para sair. Disse-lhe, com assaz ironia, que já me bastava ter sido esfolado e não deixava que me tirassem o escalpe.
Apesar de desgostado com a decoração da barbearia palaciana, Mark Twain terá ficado sensibilizado com o apurado trabalho do barbeiro, planeando já umas visitas ao domicílio para que pudesse ter a barba feita na sua própria casa.
Um dia um barbeiro parisiense virá esfolar-me ao quarto, e nunca mais ninguém ouvirá falar dele.
Ultrapassados os Açores e Gibraltar, os Peregrinos entram finalmente no Mediterrâneo e aportam em Marselha onde têm um primeiro e muito aguardado contacto com a cultura francesa. Daqui partiam de comboio para Paris onde visitariam a grande Exposição Universal de 1867, durante o reinado do imperador Napoleão III.
Esta gente de Marselha faz hinos de Marselha, e casacos de Marselha, e sabão de Marselha para o mundo inteiro; mas nunca cantam os seus hinos, nem vestem os seus casacos, nem se lavam com o mais pequeno sabonete.
Aproveitando uma escala em Gibraltar, Mark Twain e alguns Peregrinos aproveitaram para uma breve visita à segunda cidade mais antiga do mundo, Tânger. Uma cidade onde coabitam diferentes credos e estratos sociais o que leva a uma situação curiosa, notando Twain que há três domingos por semana. O dos muçulmanos é à sexta-feira, o dos judeus ao sábado e o dos cônsules cristãos ao domingo.
Menos impressionantes são as lojas de Tânger cujas dimensões médias (...) são semelhantes ao espaço de um chuveiro numa terra civilizada. Enfim, nem tudo pode ser um pôr-do-Sol mágico nas praias paradísiacas do Mediterrâneo.