Acerca do ano literário
Começou com uma reflexão sobre política internacional através de "Da China" de Henry Kissinger. Uma história das relações políticas do Império do Meio com o mundo exterior dando um ênfase óbvio às relações sino-americanas, em especial ao período em que Kissinger fez parte do executivo e conduziu as negociações para abertura da China comunista ao mundo. Um livro fascinante que me chamou a atenção para personagens históricas como Zhou Enlai, Mao ou o próprio Kissinger. Assim, "Da China" deu o mote para outras leituras deste ano que agora acaba, entre as quais destaco a biografia de Zhou Enlai, "The Last Perfect Revolutionary". Foi o livro de que mais gostei este ano pelo retrato exaustivo de um homem que apesar de aprisionado muitas vezes nas contradições entre os seus princípios e as suas funções, lutou sempre por um caminho mais sensato e com uma visão mais abrangente e moderna do lugar da China no mundo. Um homem que viveu à sombra de Mao, assombrando o grande líder até ao fim dos seus dias.
O tema China atravessou de forma transversal todo o ano com outros livros como "As atribulações de um chinês na China" de Júlio Verne, "China as I see it" de Pearl S. Buck ou "O Mandarim" do nosso Eça de Queiroz. No conjunto, todos estes livros espicaçaram a minha curiosidade pelo Oriente e, acima de tudo, deram-me algumas pistas sobre a forma de ver a Vida na China e como isso explica tantos conflitos latentes entre Oriente e Ocidente. No entanto, nem só de China se fizeram as viagens deste ano, também fui a outros sítios: explorei a Antártida com Shackleton, visitei o Chile de Pinochet através das aventuras de Miguel Littín narradas por Gabriel Garcia Marquez, fui à Coreia do Norte contemporânea com José Luís Peixoto e fiz uma cruzada pela Europa e pela Terra Santa através das palavras ácidas e acintosas de Mark Twain.
Na categoria que eu defino como os romances mais tradicionais, e porque os clássicos são sempre actuais, aprofundei um favorito de sempre, John Steinbeck, em contos curtos como "A Pérola" ou em novelas como "O Inverno do Nosso Descontentamento"; procurei o humor corrosivo de Philip Roth e encontrei-o num belo livro sobre o matrimónio de comunistas e outros aspectos quotidianos da era McCarthy; peguei o touro pelos cornos no que a Hemingway diz respeito com "Adeus às Armas" e "Por Quem os Sinos Dobram", ficando finalmente rendido ao estilo aparentemente simples de Hemingway que tanto me tinha desapontado em "The Garden Of Eden". Falando em clássicos, é impossível deixar de mencionar que li finalmente um dos maiores, "Anna Karenina" e somei também mais algumas aventuras de Poirot.
No capítulo sempre fértil das desilusões destaco a minha primeira abordagem a Selma Lagerlöf com "A Lenda de Gösta Berling", uma história e um imaginário que não me cativaram, num livro escrito num estilo que não apreciei sobremaneira. Menção honrosa também para Faulkner: depois de ter lido "A Luz em Agosto", romance de que não gostei, tentei agora uma versão mais curta, na novela "O Homem e o Rio"; porém o estilo complexo na construção das frases tende a perder-me nos raciocínios do autor o que é pena porque os temas abordados são muito interessantes. Ainda não desisti, conto ler "O Som e a Fúria" e, com mais maturidade, talvez consiga finalmente apreciar um autor que me parece estar num elevado nível técnico e literário mas que teima em não me cativar.
E porque a forma também é importante, 2014 foi o ano em que li finalmente em formato digital. Conclusão: tá giro e é engraçado mas o papel vai continuar a dominar as minhas leituras; não fossem os constrangimentos económicos e nem sequer os ebooks seriam uma opção. Nada consegue reproduzir a sensação de ter um objecto físico arrumado numa prateleira de uma qualquer estante. As minhas aventuras digitais foram quase exclusivamente direccionadas a Eça de Queiroz começando pelo já citado "Mandarim", os "Contos", "A Relíquia" e "A Cidade e as Serras". De "A Relíquia" guardarei para sempre uma genial primeira parte e a certeza de que nem que El Rei me convide para um chá no Paço eu vou deixar de ler Eça. Mais do que as descrições por vezes até fastidiosas, é o humor o ponto alto dos seus livros. E não é humor oco, é humor inteligente, material de reflexão: as desventuras relatadas na "Civilização", expandidas em "A Cidade e as Serras" fizeram-me pensar qual o lugar certo para um rapaz da aldeia que estudou na cidade e agora tem um mundo de escolhas pela frente. Apesar destes pensamentos mais ou menos profundos, não posso deixar de sorrir com a encantadora ironia que é ler "A Cidade e as Serras" num tablet. O que diria Eça destas modernices?
Veremos o que 2015 reserva sendo que é certo que começará com a "Diplomacia" de Kissinger e "O Valente Soldado Chveik" de Hasek. Depois, espero voltar a Pynchon antes da estreia de "Vício Inerente" (o novo filme de Paul Thomas Anderson), Pearl Buck, Steinbeck, Saramago, Garcia Marquez, Gore Vidal e Vargas Llosa. Espero ainda estrear-me na obra de Agustina Bessa-Luís, Camilo, Conrad, Cervantes e quiçá Machado de Assis de quem tenho visto algumas referências interessantes. Ao trabalho portanto!