Acerca das viagens de Twain: Mitos caídos - parte I (As barbearias de Paris)
Principia aqui uma nova sub-rubrica com a qual todos os viajantes se poderão identificar: chegar a um sítio com altas expectativas e nada corresponder à ideia que tínhamos projectado com base em pesquisas prévias. O mesmo aconteceu com Mark Twain durante a sua Cruzada até à Terra Santa.
Entre as peripécias com o guia turístico, que acabaram por marcar a estadia em Paris, Mark Twain pôde enfim concretizar um sonho de criança.
Desde pequenino que eu tinha a magnífica fantasia de um dia me fazerem a barba numa barbearia palaciana de Paris. Queria poder estender-me ao comprido numa poltrona para inválidos com quadros e mobiliário sumptuoso à volta; com frescos nas paredes (...) com perfumes da Arábia a inebriarem-me os sentidos (...) Ao fim de uma hora despertaria a contragosto e contemplaria a minha carinha suave e macia como a de um bebé. Quando me fosse embora, imporia as mãos sobre a cabeça do barbeiro, dizendo: «Deus te abençoe, meu filho!»
Apesar de desconhecer os usos e costumes do século XIX no que ao corte de pilosidades diz respeito, diria que se calhar eram expectativas um tudo-nada elevadas. O mundo de Mark Twain começa a desmoronar assim que entra na "barbearia palaciana".
Levaram-nos então para uma salinha das traseiras, exígua e pardacenta; arranjaram duas cadeiras de escritório e sentaram-nos nelas com os casacos vestidos.
Estava então o circo montado e tudo pronto para que "um dos vilões das perucas" (a.k.a. barbeiro) iniciasse a nobre cerimónia do fazer da barba de um distinto cavalheiro americano.
...ensaboou-me a cara (...) e, como toque final, emplastrou-me uma massa de espuma dentro da boca. Cuspi aquela coisa nojenta com um grande palavrão em inglês. (...) Depois o criminoso amolou a faca na bota (...) O primeiro golpe da lâmina descascou-me a pele da cara e fez-me levantar da cadeira. (...) Diga-se apenas que me sujeitei ao cruel sacrifício de deixar um barbeiro francês fazer-me a barba, com lágrimas de tremenda agonia a correrem-me pelas faces (...) E então o aprendiz de assassino levou uma bacia de água abaixo do meu queixo e salpicou o que estava lá dentro pela minha cara (...) sob o falso pretexto de lavar o sabão e o sangue. (...) preparava-se para me pentear quando pedi para sair. Disse-lhe, com assaz ironia, que já me bastava ter sido esfolado e não deixava que me tirassem o escalpe.
Apesar de desgostado com a decoração da barbearia palaciana, Mark Twain terá ficado sensibilizado com o apurado trabalho do barbeiro, planeando já umas visitas ao domicílio para que pudesse ter a barba feita na sua própria casa.
Um dia um barbeiro parisiense virá esfolar-me ao quarto, e nunca mais ninguém ouvirá falar dele.