Acerca da sabedoria do cinismo
Eu hei de lhe falar lugubremente
Do meu amor enorme e massacrado,
Falar-lhe com a luz e a fé dum crente.
Hei de expor-lhe o meu peito descarnado,
Chamar-lhe minha cruz e meu Calvário,
E ser menos que um Judas empalhado.
Hei de abrir-lhe o meu íntimo sacrário
E desvendar a vida, o mundo, o gozo,
Como um velho filósofo lendário.
Hei de mostrar, tão triste e tenebroso,
Os pegos abismais da minha vida,
E hei de olhá-la dum modo tão nervoso,
Que ela há de, enfim, sentir-se constrangida,
Cheia de dor, tremente, alucinada,
E há de chorar, chorar enternecida!
E eu hei de, então, soltar uma risada.
Pela mão de Cesário Verde, é um poema muito engraçado que aborda o cinismo como uma espécie arma de arremesso no digníssimo campo do engate. Porém, torna-se especialmente divertido (ou só parvo) se pensarmos que, adicionando uns trocadilhos ordinários e badalhocos, poderíamos estar na presença de uma obra saída da pena do mais ilustre trovador de Vila Praia de Âncora. Fica a tímida sugestão de um admirador para esse colosso da música popular e outra alma embriagada de poesia.
Enfim, a sabedoria poética de Cesário Verde ao serviço dos mais altos desígnios. O mais alto neste caso.
Um encanto.